Análise
por EDULOG
13 de novembro de 2025 |
De acordo com o Balanço Anual da Educação 2025, o apoio a alunos com necessidades educativas específicas (NEE) tem vindo a aumentar. Na realidade concreta das escolas, o que é que isto significa para os alunos surdos?
Na realidade das crianças surdas temos um problema de base: não sabemos quantas são. Não existe um levantamento nacional atualizado sobre crianças ou alunos surdos. Trabalha-se apenas com os números das escolas de referência para alunos surdos, ou seja, escolas de educação bilingue, que em Portugal são 18 instituições. No caso dos alunos que estão integrados no sistema de ensino “normal”, não temos dados que nos digam de quantas crianças e jovens estamos a falar.
Além disso, não há uma caracterização consistente desses alunos. A população surda é das mais heterogéneas que existe: há crianças que usam Língua Gestual Portuguesa (LGP), outras que nunca tiveram contacto com LGP, crianças com implante coclear, crianças que comunicam por mímica em casa, famílias que não falam língua gestual. São realidades muito diferentes. Sem saber que língua cada criança adquiriu e domina, é muito difícil desenhar intervenções adequadas.
Portanto, o apoio pode estar a aumentar em termos gerais, mas sem dados e sem caracterização sólida, as políticas educativas sobre surdez vão continuar a ser pensadas de forma abstrata e não orientadas às realidade destes alunos.
Como é a inclusão destes alunos no sistema de ensino nacional?
A inclusão destes alunos continua a ser pensada sobretudo no plano teórico. O Decreto-Lei n.º 54/2018, que estabelece o regime jurídico da educação inclusiva, para que todos os alunos tenham acesso à educação, independentemente das suas necessidades, existe e faz sentido. O problema não está nas grandes linhas do que a lei define — está na sua aplicação prática. É que continuamos a tratar as crianças com deficiência como um grupo único, como se um aluno cego, um aluno com limitações motoras e um aluno surdo tivessem exatamente as mesmas necessidades educativas.
No caso dos alunos surdos, isto torna-se crítico porque a questão central é linguística. Se a criança não tiver acesso precoce à LGP, terá dificuldades sérias na aquisição de qualquer língua. E sem língua não há aprendizagem, socialização ou participação.
Por isso, para que a inclusão seja real, é preciso garantir o acesso à LGP desde cedo e ensinar o português como segunda língua. E é aqui que está outro problema: a estrutura sintática destas duas línguas é totalmente distinta e há ainda muito poucos professores bilingues preparados para ensinar desta forma. Sem docentes que dominem as duas línguas e consigam explicar as diferenças estruturais entre elas, não conseguimos implementar um modelo eficaz.
Os intérpretes ajudam, claro, mas não resolvem o essencial. A inclusão, no caso dos alunos surdos, depende de qualidade e, sobretudo, de intervenção precoce desde os primeiros anos de vida.
Há vários modelos possíveis de inclusão. No caso dos alunos surdos, que modelos existem hoje em Portugal e quais são, na sua opinião, os que melhor defendem a identidade linguística e a aquisição da língua?
Para mim, o modelo mais inclusivo que existe para alunos surdos é o modelo de educação bilingue. E investe-se muito pouco nele em Portugal. A educação bilingue pode funcionar tendo a LGP como primeira língua e o português como segunda, mas também ao contrário — dependendo da criança e das suas condições, que podem variar muito. Por exemplo, há alunos surdos que com implante coclear, podem ter o português como língua principal. Mas mesmo nesses casos é importante aprender língua gestual. Porquê? Porque o implante pode falhar, pode avariar, as famílias podem não ter dinheiro para a sua manutenção ou para cuidados de saúde, ou pode, simplesmente, haver rejeição do implante. Uma criança que não tenha aprendido LGP pode ficar sem comunicação durante meses ou até anos.
O modelo bilingue evita esse vazio e é o modelo mais inclusivo porque permite ao aluno mover-se livremente nas comunidades que escolher, sem estar limitado: pode comunicar oralmente quando quiser e pode comunicar em língua gestual quando quiser. Acredito que este é o modelo que mais defende a autonomia, a identidade linguística e a inclusão real. Sem investimento sério neste modelo de educação bilingue estamos a formar cidadãos dependentes do Estado. Já com com esse investimento, estamos a formar cidadãos plenos, com direitos e deveres, que podem estudar, trabalhar, constituir família e contribuir para a sociedade.
Pode partilhar exemplos — nacionais ou internacionais — de boas práticas que já provaram funcionar e que poderiam ser definidas como referência para o sistema português?
Há dois exemplos internacionais que eu considero excelentes: os Estados Unidos e a Suécia. As línguas gestuais foram proibidas nas escolas durante quase um século. A partir do Congresso de Milão, uma conferência internacional de educadores de surdos que decorreu em 1880, muitas escolas de surdos em todo o mundo deixaram de permitir a língua gestual como instrumento de educação. Só a partir da década de 1960 é que isso começou a mudar.
Os Estados Unidos e a Suécia foram dos primeiros a reverter essa decisão e a reconhecer a importância das línguas gestuais como línguas de escolaridade. Nestes países, independentemente de a criança ter um implante coclear ou não, ela pode desde o nascimento começar a adquirir língua gestual. E os pais são protegidos por legislação — por exemplo, quando é feito o diagnóstico, podem ter dispensa de trabalho para acompanhar o início deste processo. Isto faz uma diferença enorme. Estes são modelos que mostram claramente que é possível dar acesso precoce à língua gestual, apoiar os pais e garantir uma verdadeira educação bilingue.
Quais são os principais desafios que continuam a dificultar o percurso educativo das crianças e jovens surdos no sistema de ensino?
O maior desafio continua a ser a visão muito enraizada de que o aluno surdo tem de falar e tem de ser oralizado. Isto não acontece só em Portugal, mas está muito presente cá. A ideia de que a LGP prejudica o desenvolvimento oral é falsa, até porque uma coisa não invalida a outra. E não é a oralidade que está em causa. O problema é quando se força exclusivamente a via oral. Uma criança surda pode até falar, mas depois se não tem acesso à LGP não aprende as matérias, não comunica no recreio e não constrói relações. E a educação é também isto: é socialização, é interação, é linguagem. Quando uma criança não consegue brincar com os amigos, fica isolada e acaba por construir uma identidade negativa. Compara-se com os colegas ditos “normais” e entra num ciclo de desmotivação: perde interesse, abandona a escola precocemente, e mais tarde não consegue encontrar emprego. Isto tem consequências reais, que não têm apenas que ver com escolaridade — é sobre o futuro dessas pessoas que estamos a falar.
Costumo dizer que muitos alunos surdos são estrangeiros no seu próprio país. A única diferença é que falam uma língua diferente. Mas como a surdez é uma deficiência invisível, a sociedade não reage da mesma forma. Se vemos uma pessoa cega ou alguém em cadeira de rodas, o impacto visual é imediato e há uma resposta social. No caso da surdez, só percebemos a diferença quando a pessoa começa a comunicar. E é também por isso que estes desafios continuam tão invisíveis. Mas a aquisição da língua é fundamental. É isso que nos torna humanos. Sem língua não há vida em comunidade. Sem língua não fazemos nada. É por isso que a educação bilingue, com acesso real à língua gestual desde cedo, é tão decisiva.
Celebramos a 15 de novembro o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa. O que é que ainda falta fazer, em termos de políticas educativas, para assegurar que a LGP tem o mesmo estatuto e o mesmo “peso” pedagógico que reconhecemos a qualquer outra língua no sistema de ensino?
Há ainda muita coisa por fazer para garantir que a LGP tem o mesmo estatuto pedagógico que qualquer outra língua. Mas também é justo reconhecer que houve avanços. Eu lembro-me de há uns anos comunicar com surdos em público e as pessoas olharem como se aquilo fosse algo muito estranho. Hoje já temos intérpretes na televisão, já não se estranha tanto. Avançámos.
Agora falta clarificar e assumir politicamente o que é, de facto, a educação bilingue. O antigo Decreto-Lei n.º 3/2008 fazia isso melhor do que o atual: definia o que era a educação bilingue e promovia o uso da LGP por vários agentes educativos. Porque a verdade é que a língua gestual não deve existir só dentro da sala de aula. Deve estar na escola toda: no bar, no recreio, nos serviços. Uma língua serve para viver, não apenas para aprender conteúdos académicos.
Considero que o grande obstáculo que temos de vencer é a ignorância — e ela começa logo na maternidade, quando nasce uma criança surda. A visão médica dominante promete “cura”, como se o implante coclear transformasse a criança num ouvinte normal. Mas não existe ouvido biónico. Existe, sim, uma ajuda técnica. E se não se mostra às famílias que há uma comunidade, uma identidade e uma língua visual, elas optam por aquilo que lhes parece mais “normal”, mas que muitas vezes não garante linguagem.
Esta questão não é um problema técnico: é um problema político e cultural. Não falta evidência. Não falta ciência. O que falta é assumir que a surdez não é algo a corrigir, mas uma forma diferente de ser, com uma língua própria. Se dermos acesso à LGP desde o início e tivermos políticas consistentes com isso, a criança surda pode tornar-se um cidadão pleno. Se não o fizermos, estamos a produzir exclusão e isso tem consequências, não só para a criança e para a família, mas para toda a sociedade.